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Comentar Os Lusíadas

A tradição comentarística do poema épico camoniano é irregular e de qualidade variável. Ao contrário do que se passa, por exemplo, na exegese de Dante, que começou imediatamente após a redacção da Commedia, que nunca teve soluções de continuidade prolongadas e que continua a ter expressão editorial em várias línguas, o comentário verso-a-verso ou estrofe-a-estrofe de Os Lusíadas foi-se reduzindo, de modo gradual, a notas mais ou menos eruditas que explicam o vocabulário inusitado, as referências históricas e as alusões mitológicas.

Há várias razões que explicam estes factos. Uma delas prende-se com a qualidade superlativa de um dos primeiros comentários de Os Lusíadas, levado a cabo por Faria e Sousa e publicado em Madrid, em castelhano, em 1639. A exaustividade de Faria e Sousa, que se estende das preocupações filológicas com a fixação do texto à minúcia analítica que visa esclarecer o sentido de cada passo do poema, à apresentação de uma interpretação global de Os Lusíadas, incluindo juízos de gosto assentes em comparações com os clássicos gregos e latinos e com os contemporâneos espanhóis e italianos, tornou-se pedra de toque para comentadores futuros, uma empresa que, embora imperfeita, era fruto de uma erudição e de uma argúcia crítica que dificilmente se encontrariam reunidas, em tão larga escala, numa só pessoa. Nem, a bem da verdade, em várias pessoas.

Outra razão diz respeito ao estatuto conferido a Os Lusíadas pelas vicissitudes da história de Portugal. O facto de, nas edições do poema que contêm um aparato crítico (habitualmente dirigidas aos estudantes do ensino secundário), a exegese em forma de comentário ser preterida a favor das notas esparsas resulta da suposição de que o sentido do poema é conhecido, e que mais não resta fazer do que fornecer um dicionário abreviado de expressões pouco usadas e ordenar aqui e ali uma sintaxe complexa que os estudantes de outros tempos eram obrigados a escandir sem que lhes fosse exigido o exercício do sentido crítico. A divisão de períodos e a análise de orações consistiam numa vénia forçada ao poema que, sobretudo durante a ditadura salazarista, não só exemplificava a língua portuguesa no seu esplendor, mas continha a verdade sobre uma presuntiva essência da portugalidade. Esta, paradoxalmente, não era perceptível pelo estudo da sintaxe, mas transmitia-se através da repetição de lugares-comuns sobre o valor dos portugueses e dos descobrimentos, e da riqueza filosófica, antropológica e religiosa da epopeia de Camões, dispensando a leitura e a interpretação, e tendo como consequência a remissão do texto para um papel totalmente irrelevante na formação de quem o lia – um estatuto que a Universidade, com raras excepções, confirmava, alimentando, com pompa e estudos de fontes, uma massa informe de idées reçues.

Os Lusíadas eram, pois, um clássico que já não precisava de falar pois dissera já tudo o que tinha a dizer. Um clássico mudo não é, todavia, um clássico – um texto ou uma obra de arte cuja aparente familiaridade esconde a complexidade, e que precisa de intérpretes para continuar a dar os frutos que os clássicos dão quando lhes prestamos a atenção que merecem: sustentar uma educação humanística e liberal que visa o exercício desinteressado do espírito crítico, sem preocupações de outra ordem que não seja a de tornar acessível, no nosso tempo, o sentido remoto de um conjunto de proposições. De modo a que um clássico seja importante para quem o lê, é necessário que as melhores exegeses que dele foram feitas estejam disponíveis e sejam objecto de escrutínio, a fim de poderem manter o debate vivo e originar novas interpretações e comentários.

O projecto “Comentar Os Lusíadas” tem por objectivo produzir um comentário paralelo do texto, segundo o modelo de Faria e Sousa, que não só transporte para a actualidade o que de melhor foi sendo escrito acerca de Camões – incluindo, por maioria de razões, os contributos mais recentes dos estudos camonianos – mas que também proponha novas leituras. Em grande medida, comentar Os Lusíadas é, também, comentar os seus leitores mais respeitáveis.

Um comentário desta natureza não poderá deixar de dar conta de todas as dificuldades filológicas inerentes ao texto; de recensear o modo como a rede de alusões e citações permite a Camões rever a tradição clássica e historiográfica e assim testar os limites do género épico; de convocar outros textos camonianos e contemporâneos de Camões que iluminem a percepção da sua epopeia; e, sobretudo, de examinar criticamente a bibliografia secundária, definindo o estado da arte dos estudos camonianos e tornando menos árduo o trabalho a futuros leitores – não na acepção em que a interpretação de um clássico pode dispensar o esforço, mas no sentido em que se passa a saber o que de relevante já foi escrito sobre Os Lusíadas, e por quem.

 

Coordenação:

João R. Figueiredo