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Literatura e Etnografias: discurso da "nação" no séc. XIX

A literatura portuguesa do séc. XIX é em grande parte dominada por um processo, regular e contínuo, de interpretação de Portugal; a etnografia em Portugal, no séc. XIX, escreve-se no quadro de uma antropologia de construção da Nação. Estas duas constatações obrigam a uma conexão, pois apontam quer para a fundamentação ou legitimação etnográfica da escrita literária, quer para a radicação dos discursos etnológicos e antropológicos no espaço literário aberto pela poética do Romantismo. É dessa conexão que este projeto se ocupa, procurando estudá-la no conjunto (ou numa parte) dos seus desdobramentos.

Só numa perspetiva atual, marcada pelas divisões académicas do campo do saber cuja instituição não se dá senão no séc. XX, se poderá estranhar a ligação entre literatura e etnografia num mesmo espaço de escrita ao longo do séc. XIX. A interpretação, descrição e teorização da identidade cultural (o discurso da etnografia, portanto) é nessa época obra de escritores que ao mesmo tempo reinventam o imaginário que dá corpo representativo a essa identidade, através da ficção, da poesia ou do teatro.

A legitimação etnográfica da escrita literária — todavia sempre problemática, sempre crítica — requer um esforço de identificação do “povo” e do “popular”, uma articulação, sujeita a diferentes graus de complexidade e intencionalidade, entre o “popular” e o “nacional”. Investigar e reconstituir tradições, rever e reativar a memória histórica, produzir um “corpus” da Nação, que tanto pode encontrar-se no romanceiro da tradição oral quanto na narrativa da história política e social, são no séc. XIX tarefas inerentes à vida literária. Em paralelo, o culto da língua nacional e da sua singularidade, a apologia do vernacular, a intensificação da pesquisa linguístico-filológica, desenham o quadro no interior do qual escrita literária e saber etnográfico constantemente se encontram e mutuamente se definem.

O discurso da identidade nacional no séc. XIX é inseparável da invenção regular de uma etno-semiótica que contrasta “Portugal” com outras entidades designadas como “línguas”, “povos” ou “nações”, cada uma com o seu “caráter” ou “génio” — duas metáforas cuja natureza gráfica e literária estrutura esse discurso. É em tal âmbito que a etnografia é inseparável da sua própria pluralização em etnografias diversas, organizando discursos de intenção histórica, histórico-literária, estética, política, geográfica ou antropológica no sentido mais amplo. A ligação desses discursos ao domínio literário nunca se perde; a sua conexão com novas instituições de conhecimento e novos objetos de saber tem de ser estudada e reavaliada.

Dois grandes momentos históricos faseiam a formação deste espaço etno-literário no séc. XIX em Portugal: o Romantismo e a chamada “Geração de 70”. As zonas de sobreposição ou de descontinuidade que os ligam e os distinguem não estão ainda suficientemente analisadas. O modo como a ideia de literatura se forma e se reforma, a par de uma representação crítica da “Nação” e dos seus limites, solicita um estudo que acompanha o exame da maneira como se institui e consagra o lugar, ainda ou já pré-disciplinar, das novas “ciências sociais” ou “ciências humanas”.

O projeto Literatura e Etnografias propõe-se responder a algumas perguntas que nem a história literária nem a história da antropologia, por si sós, se pode dizer que tenham já respondido no decurso regular e já muito significativo do seu trabalho em Portugal. Como se teorizou a característica “nacional” do corpus textual tradicional e “popular”? Como evoluiu a configuração de uma história literária portuguesa ao longo do séc. XIX? Que valor e significado tem a noção de “povo” e de que maneira se relaciona com a noção de “raça” na articulação histórica da ideia de identidade nacional? Que géneros ou práticas discursivas cabem no uso oitocentista da palavra “literatura”? Como é representada a inscrição do espaço literário português no âmbito da literatura considerada de um ponto de vista cosmopolita?

 

Coordenação:

Gustavo Rubim